Acordar. Um mau acordar que escorre corpo fora enquanto a água aquece os primeiros pensamentos do dia.
Um relance no espelho embaciado e ver aquelas olheiras. Sempre as olheiras; imagem de marca cravada nos olhos, indisfarçável apesar dos cremes, anti-olheiras, iluminadores e toda a panóplia de produtos possíveis. É cansaço, dizem.
Não sei o que vestir. Não sei. Não gosto disto. Talvez isto ou antes aquele vestido. Sim, é isso.
E depois o som das botas que ecoa no corredor até a porta fechar.
O pequeno-almoço tomado a correr, apanhar o comboio e ir em pé, quase de olhos fechados, ainda a imaginar que o dia nem sequer começou. Tirar o casaco e pousar a mala.
Já estou cheia de calor.
E as pessoas que se encostam, o saco a tocar nas pernas, o guarda-chuva em cima das botas, a criança que não se cala porque quer ir sentada e ninguém se digna a dar o lugar.
As mesmas caras todos os dias. De vez em quando muda de carruagem, precisa de outras caras, outras expressões, pessoas mais felizes, sorrisos reais ou apenas o vislumbre de um sinal de felicidade.
Está quase.
Quinze minutos depois sai e enquanto caminha sente mais uma vez o peso de uma semana de trabalho. É sexta-feira e nem isso alivia as preocupações.
Preciso de ligar à minha mãe, perguntar ao meu pai como correu a reunião, anular o contrato com a Vodafone, pagar à D. Alice, marcar a consulta, reformular mais um capítulo do trabalho e o resto... o resto.
A escola. A escola, todos os dias, todas as noites, minutos e segundos. Uma preocupação constante. Desabafos que são feitos nos poucos jantares com toda a família, angústias que se revelam enquanto as batatas fritas desaparecem do prato.
Não fales mais nisso filha; dás cabo da tua saúde.
E ela que precisa de falar, que todos os dias vai para casa e só não fala sozinha porque parece mal. Porque lhe poderiam chamar de maluca.
Até amanhã. Quando voltas? Ficas bem?
As despedidas, a promessa de voltar amanhã ou depois. Às vezes a vontade de ficar só por aquela noite, só por sabê-los ali na sala, no quarto. A família que afaga a alma.
E o comboio de novo. De manhã. De noite.
Está quase.
1 comentário:
Ola sofia! realmente que coincidencia!! :))) achei piada e curiosidade o pormenor da tua descrição, exactamente isso! mas vais ver que no meio de tudo isso e das repetições há algo de extraordinário, acredita. Eu cada vez mais me convenço que a alegria e o "sossego" passa quando olhamos precisamente para isso q escreveste e as coisas, apesar de repetidas, ganharam sentido.
um beijinho e amanhã não te esqueças de mandares um berro à criança que chora no comboio e um pontape no guarda-chuva ;)
boa semana!
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